Língua(s) de sinais em #Paris2024: algumas considerações

Vitor Hochsprung
5 min readJul 29, 2024

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Pessoa sinalizando durante a cerimônia de abertura. Foto: Reprodução/CazeTV

O maior evento esportivo do mundo, embora carregue esse rótulo, não é só sobre esportes. As Olimpíadas também nos fazem refletir muito sobre história, cultura, sociedade e comportamento. Automaticamente, não é difícil que nos coloquemos a refletir também sobre língua, linguagem e gramática. Desde a cerimônia de abertura de #Paris2024, linguistas ao redor do mundo já tiveram a oportunidade de anotar várias coisas em seus caderninhos pessoais. Uma das coisas que podem ter feito o lápis correr no papel como se fosse atleta é o uso (ou o não uso) de línguas de sinais durante o evento.

Na própria cerimônia, que ocorreu no dia 26 de julho, sexta-feira, uma singela parte da apresentação foi sinalizada, o que é importantíssimo para a visibilidade da comunidade surda no mundo inteiro, mas aqui podemos pontuar outra questão fundamental: não seria muito mais inclusivo e acessível se as emissoras oficiais contassem com tradução e interpretação durante todo o evento? Não sei como está ocorrendo no cenário “ao vivo” lá em Paris, mas aqui no Brasil, pelas transmissões, não vejo nada nesse sentido. Ainda, parece-me injusto classificar essa lacuna como um ‘problema orçamentário’.

Não é como se não reconhecessem a importância, afinal, nos mesmos canais de transmissão brasileiros, isso chamou a atenção dos narradores e comentaristas, que enalteceram (pelo menos por alguns segundos) a necessidade desse tipo de ação inclusiva. A mesma reação positiva foi percebida quando a skatista multimedalhista, Rayssa Leal, sinalizou “Jesus é o caminho, a verdade e a vida” antes de medalhar.

Enquanto essas singelas manifestações evidenciavam questões importantes, algumas falas nas transmissões remetiam a mitos e outros equívocos bem comuns a respeito da Libras e línguas de sinais de um modo geral, como o ato de nomear como ‘Libras’ toda e qualquer expressão sinalizada ou chamar de “linguagem” algo que tem status de língua. Vamos a uma contextualização.

Língua de sinais universal?

Libras é a sigla para ngua Brasileira de Sinais. Saber o nome por extenso é uma pista significativa para identificar que essa língua é usada majoritariamente em contexto brasileiro e que, se for assim, é bem provável que cada país tenha a sua própria língua de sinais, como é o caso da American Sign Language (ASL — usada nos Estados Unidos e no Canadá) ou Langue des Signes Française (LSF — usada na França). Há, ainda, a possibilidade de haver mais de uma língua de sinais no mesmo país (surpresa: multilinguismo não é só oral). No Brasil, por exemplo, linguistas têm a intenção de mapear e estudar línguas de sinais usadas por povos indígenas que estão localizados por todo território nacional.

Em uma das transmissões televisivas que ocorreram no Brasil, foi mencionado o caráter universal da Libras, de maneira equivocada, pela ex-ginasta Daiane dos Santos, que já se retratou e pediu desculpas à comunidade.

O equívoco de Daiane, contudo, pode abrir espaço para discutirmos algumas coisas interessantes sobre línguas de sinais ao redor do mundo.

Até existe uma tentativa de universalização através do chamado “Gestuno” ou “Sinais Internacionais”, a depender da linha teórica que se segue. A proposta é de uma língua artificial com até alguns sinais de línguas em contato, que seria usada em contextos internacionais (sobretudo acadêmicos, o que é questionável pelo elitismo por trás da ideia), para que pessoas surdas do mundo todo pudessem interagir nessa língua. Há algumas críticas da comunidade em relação a essa alternativa, uma vez que é difícil que esse sistema não carregue influências culturais de uma região ou seja associado a algum local específico, deixando um pouco da identidade linguística em segundo plano. Propositalmente, menciono que é, em um primeiro momento, uma língua artificial, porque isso é um ponto importante para diferenciá-la da Libras, que emergiu de interações naturais entre as pessoas e não a partir de planejamento. A Libras, a ASL, a LSF e outras línguas de sinais por aí são, portanto, línguas naturais.

Indo um pouco mais além, podemos ver que no seu vídeo de retratação, de forma muito certeira, Daiane dos Santos menciona a diferença entre a Libras e a LSF. Janice Gonçalves Temoteo Marques, pesquisadora da Libras e docente na Unicamp, e Antonielle Cantarelli, doutora em Psicologia Experimental pela USP, realizaram um estudo comparativo entre sinais dessas duas línguas e chegaram à conclusão de que há diferenças fonético-fonológicas significativas entre os sinais.

Todavia, é possível falar também das semelhanças que essas duas línguas possuem, afinal, logo veremos que é como se a LSF fosse a “mãe” da Libras.

No site do Instituto Nacional de Educação de Surdos — INES, encontramos o seguinte trecho: “O atual Instituto Nacional de Educação de Surdos foi criado em meados do século XIX por iniciativa do surdo francês Eduard Huet, tendo como primeira denominação Collégio Nacional para Surdos-Mudos[1], de ambos os sexos. Em junho de 1855, Huet apresentou ao Imperador D. Pedro II um relatório cujo conteúdo revelava a intenção de fundar uma escola para surdos no Brasil. Neste documento, também informou sobre a sua experiência anterior como diretor de uma instituição para surdos na França: o Instituto dos Surdos-Mudos de Bourges.

É possível ligar os pontos: por um tempo considerável, o INES foi o único espaço de ensino de uma língua de sinais, então surdos de todo Brasil estudavam lá e, ao voltar, espalhavam a língua em suas regiões. Muitos sinais da Libras sofrem influência da LSF pelas razões citadas acima. Um exemplo disso é uma das variações do verbo “falar”, que é feito com a configuração de mão em P (no alfabeto da Libras) em alusão ao verbo que, no francês, é “parler”.

Mas calma: as línguas de sinais não são traduções de línguas orais.

Línguas visuoespaciais e línguas orais têm significativas diferenças que vão muito além da forma como elas são usadas. Podemos denotar diferenças gramaticais e lexicais entre elas. Se você sinalizar, em Libras, uma frase na exata estrutura do Português Brasileiro, pode correr o risco de não ser compreendido ou até de não passar a mensagem que gostaria de passar. Às vezes, é possível que haja certa funcionalidade, mas é preciso atenção para não cair no que a comunidade chama de “português sinalizado”, que é essa tentativa de sinalizar através de uma simples tradução.

Nesse sentido, podemos partir para uma outra reflexão: o comum rótulo de “linguagem de sinais” que línguas como a Libras recebem. Diferenciar a língua portuguesa da Libras é entender que línguas de sinais possuem gramáticas (fonologia, morfologia, sintaxe e semântica) próprias. Linguistas analisam essas línguas levando em consideração esse contexto. Além disso, elas carregam em si toda a identidade, cultura e história de uma comunidade de fala. Caracterizar línguas de sinais como linguagem é, por assim dizer, um erro conceitual muito comum. Entretanto, é preciso entender que o caráter linguístico de línguas de sinais precisa ser evidenciado e entendido como típico de língua. Dessa forma, mais políticas linguísticas favoráveis à acessibilidade podem ser estabelecidas. Assim, talvez, a gente tenha interpretação simultânea nas próximas Olimpíadas (ou estou sonhando alto demais?).

Para saber mais

Tem um episódio bem legal do Babel Podcast, em que Bruno Guide e Cecília Farias, linguistas que estudam na USP, contextualizam de forma bem mais completa algumas situações levantadas aqui:

https://open.spotify.com/episode/2HYGm86AiuNfIvuZScXfYD

[1] Hoje em dia, não usamos mais a expressão surdo-mudo. A “mudez” é uma condição raríssima. Não é por não escutar, que uma pessoa não fala. Usamos, então, apenas surdo para nos referirmos à comunidade.

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Vitor Hochsprung

Doutorando em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina, pesquisando e fazendo popularização científica [@vitorlinguistica]